Prólogo (PARTE I)

O estrondo lamuriento e agudo dos vidros quebrando-se ecoou tristemente na noite escura. Um alarme baixo começou a apitar roucamente, abafado pelas pancadas do pêndulo do relógio gigante que espreitava na escuridão.
Um rápido se esgueirar e o vulto esbranquiçado de alguém pulou a vidraça quebrada e iniciou uma busca na penumbra, onde as prateleiras lotadas de caixinhas eram levemente iluminadas pelo neon quebrado de um outdoor sujo, no outro lado da rua.
Com destreza provinda da prática, o vulto retirou um saco médio de suas roupas e começou a derrubar algumas das caixinhas dentro dele. Poucos minutos depois uma prateleira estava vazia, e o vulto amarrava o saco.
Quando finalmente um carro patético de polícia, com um único policial sonolento encostou defronte à farmácia arrombada, o vulto já tinha se ido.


Uma canção gritada e estridente tocava num carro parado de portas abertas. Cães vadios ladravam raivosamente nas ruas, despejando seus dejetos de pouco em pouco. Uma criança faminta de olhos fundos estava encostada num poste, tragando um cigarro lentamente. Com um olhar de desprezo para tudo aquilo, o vulto assaltante vagueou até um prédio encardido de dez andares. Entrou na recepção, onde um velhote dormia com uma revista pornográfica sobre o rosto.
Em silêncio o vulto entrou no elevador, que rangeu por todo o percurso até que finalmente parou no oitavo andar, onde abriu as portas enferrujadas, e o vulto seguiu até o apartamento cuja porta tinha o número 222 pintado. A porta ao lado era a 542.
Entrou silenciosamente, andou no escuro até o quarto pequeno que ficava depois da cozinha. Acendeu a luz e se jogou na cama, dividindo o espaço com um prato sujo de molho. Colocou o saco cuidadosamente sobre as cobertas, e sentando-se de pernas cruzadas, o vulto deixou a luz iluminar seu rosto.
A pele era de um branco tão pálido que chegava a ser transparente. Cabelos louros, levemente sujos, desciam em ondas mal-cuidadas pelo corpo magro, até a cintura. Juventude se misturava à seriedade em seu rosto que podia ser gentil, mas que estava sempre isento de emoções. Distante, como se seus olhos da cor do céu ao verão não focassem esta realidade. Passaria por uma garota fria, se não parecesse tão inocente. Era quase estranho aquele seu ar de alienação.
Era uma criança, ou pelo menos deixara de sê-lo há pouco tempo. Devia ter doze anos, embora seu porte dissesse menos, e seus olhos dissessem muito mais. Parecia uma pequena anja, com os olhos eternamente postos em mundos que não podíamos ver, de triste semblante por estar presa naquele mundo, e de saudade dos tempos em que voejava livremente pelo céu anil.
Não era uma anja. Era uma assaltante. Sua face cheia de triste inocência não deve ser levada em conta. Ela roubava, não era uma criancinha pura. Que mais tal vil criatura em pele de ovelha loira podia ter feito? Talvez carregasse assassinatos nas costas, não se pode saber. Debaixo daqueles olhos azuis, seus pensamentos estavam trancados por mil barreiras.
Suas mãos trabalharam rapidamente com o saco de pilhagem. Em instantes, as dezenas de caixinhas retangulares foram colocadas sobre a cama. Ela levantou, mexeu um pouco num grande espelho encardido, e o moveu para o lado. Atrás dele, ao invés da parede amarelada, havia três prateleiras, e uma ou duas caixinhas iguais as que estavam na cama. A anjinha-demônio tomou nas mãos as caixas que roubara e completou seu “estoque”. Apanhou uma delas, colocou o espelho de volta no lugar, e o ajeitou para coincidir com as manchas e o pó que o cercavam. Teve ainda o cuidado de deixá-lo naturalmente torto para um lado.
Ela rasgou a caixinha para abri-la, e ignorou a bula. Não precisava saber quantas contra-indicações aquele remédio tinha. Só precisava da única coisa que ele fazia. Sentiu seu estômago se contorcer de ansiedade, enquanto revelava o vidro transparente, lacrado na tampa, cheio de comprimidos compridos e perolados.
Precisava desesperadamente de um deles.
O lacre era complicado. A garota sempre se atrapalhava com ele. Sabendo que não havia chance de abri-lo com as mãos nuas, deveria ir até a cozinha e apanhar uma faca. Enfiou a embalagem rasgada e a bula nos bolsos de seus jeans largos e gastos, e ajeitou a jaqueta de moletom. Avançou até a sala, totalmente escura. Ela passara direto quando entrara, mas seria bom acender a luz agora. O interruptor estalava quando era pressionado, e aquele estalido era reconfortante.
Havia um homem sentado no sofá.
O vidro em suas mãos escapou, e estourou como uma bomba ao entrar em contato com o chão. Cacos se lançaram para todos os lados, quando uma torrente de comprimidos brancos inundou o chão. A garota sentiu seu coração explodir de susto em seu peito. Fazia tanto tempo que não sentia a adrenalina do medo, o nervosismo correr por suas veias, que o choque foi dobrado. Aquela coisa que ela temia começou a se agitar, e sentiu a coisa quente subir por sua garganta.
“Noite, Emily” Disse o homem.
Ela ia se jogar no chão. Ia rastejar atrás dos remédios, até pegar um e enfiá-lo garganta abaixo. Não importava se o chão estava sujo, se os comprimidos estavam misturados com o minúsculo pó de diamante que era o vidro moído. Tudo que ela precisava era de um deles. Mas ela parou. Congelou meio curvada, pronta para cair entre os cacos de vidro atrás do remédio branco perolado.
“Quem...?”
Sua voz era rouca. Ela praticamente não a usava. Seu tom não tinha emoção, por mais medo que sentisse. Estava tão desabituada a ter emoções que simplesmente lhe eram desconhecidas, fazendo com que uma frieza fora do comum a envolvesse. Era como um bloco de gelo, simplesmente não conseguia sentir algo de verdade.
“Uma bela noite, pequena” Riu o homem, levantando. Ele carregava algo em sua mão, algo longo e negro. Era difícil de determinar o quê era, parecia um longo bastão num saco amarrotado. “Desculpe por invadir seu apartamento assim”.
“Quem é você?” Ela sabia, sabia e sabia que devia pegar um dos comprimidos. Mas seu corpo parecia congelado no lugar. O sorriso daquele homem era perigoso. Lembrava o brilho da vingança, o humor do sádico. Todo ele era estranhamente ameaçador.
Era alto, um homem ainda jovem, mas marcado. Uma barba malfeita adornava seu rosto, assim como os olhos castanhos. Os cabelos eram compridos, castanhos como os olhos. Ah, os olhos, eram sua parte mais bela e desconcertante: seu tom de mel fresco e maduro carregavam tristeza, alegria, dor, medo, força, milhares de emoções misturadas até apenas restar aquele tom perigoso, forte. Seu braço estava oculto pela comprida manga de seu sobretudo negro, todo amarrotado e remendado, e quando ele se moveu, revelou que o estranho e maltratado objeto que trazia era um velho e antiquado guarda-chuva.
“Como você entrou aqui?”
A língua pequena e macia de Emily passou levemente por seus lábios secos, roçando e umedecendo sua boca suavemente.
Droga, fazia muito tempo que ela não se sentia tão nervosa, tão desperta. Seus pensamentos corriam tão rápido que ela mal podia acompanhá-los, seus membros estavam desesperadamente soltos e leves. Sentia sua cabeça doer conforme clareava, se livrando do topor causado pelo remédio.
James sorria perigosamente. Tirou do bolso de seu sobretudo uma chave antiga, tão lascada que faltavam verdadeiros nacos.
“Eu morava aqui. Entrei pela porta da frente”.
Era um pouco óbvio. Não havia porta dos fundos. Emily se sentia ainda mais consciente, e isso a tornava mais e mais nervosa. Suas mãos já estremeciam levemente de medo do estranho. E aquela coisa subia por sua garganta, por mais que ela lutasse contra.
“Agora esse apartamento é meu” Disse ela, corajosamente. “Saia da minha casa.”
James lhe mandou um sorriso até que gentil, destoando do brilho em seus olhos.
“Oras, não precisa ser assim. Podemos dividir” Ele riu. “Eu deixo você morar comigo”.
Uma pequena veia pulsou mais forte dentro da cabeça da loira. O efeito do remédio se fora, ela estava completamente desperta. Seu organismo talvez comemorasse a liberdade da droga entorpecente, mas ela sentia o preço ser cobrado. Uma torrente rubra subiu por sua garganta, antes que ela pudesse sequer pensar em evitá-la.
“Você deixa?!”
Seu grito trouxe uma chuva de salpicos de saliva e sangue. Um filete escarlate escorreu pelo canto de seus lábios. Seus olhos tão azuis quanto o céu de verão se arregalaram.
E então, inesperadamente, ela se curvou para a frente e despejou sonoramente algo que parecia todo o conteúdo de suas veias.
James agiu rápido. A segurou quando suas pernas enfraqueceram, tirou os cabelos sujos de sangue de seu rosto, e a amparou quando ela desfaleceu em seus braços. Soltou um muxoxo.
“Se eu soubesse... Não teria irritado...” Resmungou, enquanto colocava o pequeno e delicado corpo sobre seu ombro. Um filete de sangue o acompanhou, marcado o chão por onde passavam.
James colocou a garota recostada contra os frios azulejos do pequeno banheiro. Abriu o chuveiro, e enquanto esperava a água esquentar, entrou no quarto de Emily.
A porta do guarda-roupa rangia, e faltavam alguns pedaços no espelho. Mesmo assim, todas as roupas estavam limpas, passadas e primorosamente organizadas. Ele pegou a primeira camiseta que viu, e apanhou um short qualquer. Fechou a porta, avançou uns passos. Parou. Voltou, abriu o guarda-roupa e agarrou uma calcinha e um sutiã.
Levemente ruborizado, se atrapalhou quando seu guarda-chuva bateu no espelho. O puxou com brusquidão, e toda a moldura se moveu, revelando um espaço atrás. Curioso, tirou o espelho da parede e deu de cara com algo que parecia meia farmácia.
Suspirando, ele agarrou as roupas e voltou para o banheiro. A água já estava morna, e bufadas de suave vapor flutuavam perto do teto.
O homem empilhou as roupas sobre o vaso fechado, e puxou a camiseta suja de sangue de Emily da menina. Puxou seus shorts mais sujos ainda e parou levemente. Tentou não olhar, mas era impossível. Ruborizando como um adolescente, terminou de despi-la, e a enfiou debaixo do jato de água morna.
O sangue sumiu levemente de seu corpo inerte, deixando apenas a pele branca para trás. Seus cabelos escorreram por seu colo, cobrindo seus pequeninos seios. Ele fechou o registro e a suspendeu de novo. Emily piscou levemente, a consciência a tomando aos poucos.
Sentiu quando uma toalha levemente rústica raspou seu corpo, enxugando-o. As mãos dele eram vacilantes, e desajeitadas em seu corpo, visto que ele evitava olhá-la diretamente. Não sentiu vergonha de estar nua na frente de um completo desconhecido. Ele estava se esforçando ao máximo para ajudá-la, era mesmo um tipo de ligação.
James jogou a toalha sobre seu colo, e tentou colocar a calcinha por baixo dela. Depois de uma dúzia de tentativas, Emily colocou suas mãos sobre as dele, mornas. Com delicadeza, a peça deslizou por suas pernas, ele suspirou aliviado, mas teve que ajudá-la a abotoar o sutiã, antes de se atrever a passar os olhos em seu corpo.
“Consegue levantar?” Gentil. Ele era gentil em sua voz, em seus gestos. Ela tinha visto sempre um mundo realmente ruim, mas parecia que ainda havia algo para ela. Talvez nem tudo fosse sombra.
“Não sei” Sussurrou fracamente. Sua garganta arranhava, o gosto metálico de seu próprio sangue ainda estava em sua língua.
Apoiou-se nele. Ela era tão leve, tão pequena. Quando seus olhos pousaram em James pela primeira vez, dopada pelos remédios, pareciam frios, indiferentes. Mas agora ela estava tão frágil e indefesa que era fácil, muito fácil, se encantar por ela.
Ele a colocou cuidadosamente sobre a cama. Os olhos azuis dela o focaram e James sentiu que era fácil se perder neles e em seu medo infindável e infinita tristeza. Seus lábios estavam avermelhados, mas ela nunca parecera tão bela. Nem tão desperta.
“Remédio” Murmurou. “Me... dá...”
Ele passou sua mão nos cabelos dela. Eram macios.
“Não, pequena” Ele sorriu tristemente. “Chega de se dopar, Emily”.
“Eu tenho medo”.
Os olhos dele se arregalaram, e então se tornaram serenos.
“E ele vai embora com o remédio?”
Ela hesitou. E sua cabeça lentamente se moveu de um lado para o outro. Não. Ele fez carinho em seus cabelos de novo, e isso lhe acalmou mais que qualquer comprimido.
“Uma doença raríssima” Disse ele lentamente. “Nervohemorragia. Sangrar cada vez que se descontrolar”.
Ela desviou os olhos.
“É por isso que você toma esses calmantes? Para jamais sentir emoções fortes e sangrar?”
Ela não respondeu.
“Há cura”.
Seus olhos pareciam duas bolas azuis de tão arregalados que ficaram. Sua boca secou, e seu coração disparou.
“Calma” Sussurrou o castanho. “Calma, Emily”.
Ela respirou fundo, enquanto ele lhe fazia carinhos nos cabelos. Conseguiu tomar o controle de novo. E nem fora preciso tomar algum remédio!
“Claro que você vai precisar completar dezesseis anos antes disso. Mas uma operação e tratamento podem te curar completamente.”
Ela sorriu. Verdadeiramente. Um sorriso que encheu seus olhos azuis, que mudou completamente sua feição. E James sentiu que mesmo canalhas como ele podiam ser agraciados com uma visão como aquele sorriso.
Os olhos dela piscaram devagar, sonolentos. Ele sorriu carinhosamente para a menina.
“Durma, Emily”
Ela sorriu levemente, e fechou os olhinhos, se entregando ao sono suavemente.
Ele levantou devagar, sem perturbá-la. Mas uma mão macia e gelada segurou sua mão esquerda, bronzeada, rústica e cheia de calos.
“Fica comigo” Murmurou ela, perdida num estado entre o sono e a realidade.
James sentiu o aperto suave dela. Sentou-se na cama de novo.
“Fico” Sussurrou suavemente, beijando sua testa e segurando sua mão entre as dele. “Enquanto você quiser”.


//Nota do Autor

Sei que ficou grande demais, prometo maneirar na próxima vez. A segunda parte será postada em breve, espero que gostem.
Meio inútil avisar só aqui no finalzinho, mas a minha parte pode ser classificada como “para maiores de quinze anos por menção sexual, violência e uso indevido de medicamento roubado”. Até o/

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