Um Princípio Funesto

Primeiro veio o fogo. Annelise sentia o calor se alastrando pelo seu corpo enquanto lentamente as chamas destruíam tudo que lhe era familiar. As cadeiras estavam destruídas. Os vidros franceses da janela que sua mãe tanto insistia que polissem corretamente, estilhaçados. No chão, queimava um exemplar de Annie, a menina fantástica, que adorava quando criança por ter o mesmo nome que o seu. Numa estranha decisão, causada talvez pela irrealidade da situação, Annelise decidiu resgatar o livro das chamas. Ao longe, ouvia sua mãe chamando: “Annelise, não faça isso!”. Ela ficou irritada. Será que não podia fazer nada sem ouvi-la recamar?
De repente, a voz da sua mãe foi abafada por outras. Um grito distante ecoou por entre a fumaça. O livro não tinha mais importância. As chamas eram boas, aqueciam, mas aquele barulho estava tornando-se ensurdecedor. Várias vozes gritavam em uníssono, mas a menina não podia compreender o que diziam. Um estrondo. A porcelana da dinastia Ming estava em pedaços no chão. De um corredor, surgiram figuras encapuzadas. Elas ainda entoavam a mesma estranha “canção” de antes. A fumaça enchia a sala, mas além do cheiro habitual, havia um leve odor enjoativo que ela recordava das festas que sua mãe promovia. Charutos. Ouviu gritos, gemidos e apenas um tempo depois percebeu que vinham da sua garganta. Dor, e sua face repetida mil vezes no espelho quebrado na parede. Enfim, silêncio.

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O silêncio foi seguido por um bip. Era insistente, regular, e enchia o aposento. Ela não abriu os olhos imediatamente. Não queria que os homens encapuzados soubessem que acordara. Ela estava se perguntando o que seria aquele barulho. Uma vez conhecera um menino que havia lido centenas de livros, e que lembrava-se de todos eles. Ele certamente poderia dizer que tipo de máquina faz aquele barulho. Mas ela não via Klaus há muito tempo. Por fim, desistiu de manter os olhos fechados. Sua mãe condenaria a impaciência, mas havia algo que Julia Whitman não condenasse?
A luz encheu suas iris. O aposento era todo branco, e o cheiro de alvejante que penetrou suas narinas lhe indicou que estava num quarto de hospital. Era escassamente mobiliado. Em cima da mesa havia um solitário buquê de flores. No lado direito da cama, uma estranha máquina media sua freqüência cardíaca. É daí que vem o bip, percebeu. Pensou estar sozinha, mas numa segunda olhada percebeu uma figura sentada numa cadeira no canto esquerdo do quarto. Ele tinha os cabelos castanhos e encaracolados, e olhos da mesma cor. Esses olhos encaravam Annelise fixamente.
- Como está se sentindo? – perguntou o homem.
- Não sei. Estranha.
Andrew Rosembaun levantou-se e foi até a beira da cama da menina. Desde que podia se lembrar, ele era amigo da mãe de Annelise, e freqüentava sua casa. Fora ele quem lhe ensinara a arte da esgrima. Entretanto, isso não os fazia amigos. O jeito frio e sarcástico do homem, que a menina temia quando criança, passou a gerar mero desprezo. Ele era a ultima pessoa a quem esperava ver. Não, corrigiu-se, ele era a penúltima. O fato de seu pai não estar ali não era a menor surpresa.
- Há quanto tempo eu estou aqui?
- Dois dias – isso sim era uma surpresa.
- Tem certeza? Parece que faz tanto tempo...
- Você sumiu por três dias, Annelise. Foi encontrada num galpão abandonado perto do lago lacrimoso. Não se lembra?
- Não. Eu não me lembro de nada. Mas se eu estou aqui há três dias... Onde está a minha mãe?
Rosembaun torceu levemente a boca, e Annelise compreendeu que essa era uma pergunta que ele esperava que ela não fizesse.
- Ela está bem. Está viva, pelo menos – ele fez uma pausa antes de continuar. – Ela se feriu seriamente no incêndio. Os médicos disseram que podem curar totalmente o corpo, mas quanto à mente... Ela está em coma. Não se sabe quando vai acordar.
Agora Annelise entendia o porquê do comportamento estranho, quase gentil, que era novidade no relacionamento entre ela e Andrew. Ela sabia que a amizade dele com Julia era tão forte quanto a sua com Raphael, e que provavelmente ele estava triste e preocupado. Isso o redimiu por um momento.
- Meu pai já sabe? – a expressão de desprezo voltou ao rosto do homem.
- Já. Como se ele se importasse. Passou a semana toda ocupado aborrecendo a seguradora por causa de uns pratos Ming que nem eram...
Annelise deixou de ouvir naquele momento. A menção aos pratos lembrou-lhe subitamente da estante caindo no chão, e de uma massa de cabelos loiros com uma risada maléfica. Por um momento, deixou-se dominar, ainda que não transparecesse, pelo medo que sentia. O que acontecera naqueles três dias em que estivera sumida? Tinha uma leve consciência de que Rosembaun ainda falava mal de Anthony Whitman.
- Annelise? Você está bem? – Ele pôs a mão no tornozelo da menina, e a dor até então imaginária fez-se real. Ela afastou as cobertas e arregalou os olhos ao ver, envolto em uma pele fina que começava a sarar no tornozelo esquerdo, uma tatuagem em forma de olho.
- Como eu arrumei isso?
- Não sabemos. Já estava aí quando você foi encontrada – Andrew parecia pálido, também, e não tirava os olhos do desenho. Ele não tinha como saber que Annelise conhecia tão bem quanto ele o significado da figura. Mas ela tinha preocupações mais imediatas.
- Quando eu posso sair daqui? – Andrew pareceu sair de um transe.
- Se tudo estiver certo, amanhã mesmo o Sr. Montecchio virá lhe buscar.
- O Sr. Montecchio?
- É. Aparentemente, seu pai não achou que o seqüestro da filha fosse importante o bastante para adiar suas férias. Então Lionnel Montecchio se ofereceu para ficar com você, já que é amiga do filho dele – passar o verão com Raphael seria bom, mas esse estranho oferecimento do pai dele a deixara incomodada. Não era habitual. E nem tocarem fogo na sua casa, pensou outra parte do seu cérebro. Você só está paranóica demais.
- Está bem, então. Mas, Andrew, e quanto a...
Ele pareceu ler seus pensamentos.
- Não se preocupe, - disse. – Eu vou cuidar dela. E agora vou achar uma enfermeira para você.
Dizendo isso, ele foi embora, e Annelise voltou a pensar no que teria acontecido, amaldiçoando internamente sua memória, em geral excelente, por lhe negar essa informação. Ela não tinha como saber que a decisão do seu cérebro de esconder a verdade foi mais sensata que qualquer decisão consciente tomada em seus doze anos. Se ela fizesse a mais remota ideia do que acontecera, rezaria a um deus em que não acredita para que a apagasse de dentro de si.

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